quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

As Excelências da Mortificação - Parte I



Por Santo Afonso Maria de Ligório


Da mortificação externa

§ I. Necessidade da mortificação externa

A mortificação externa consiste em se fazer e sofrer o que contraria os sentidos exteriores e em se privar daquilo que os lisonjeia. Enquanto ela é necessária para evitar o pecado, é de obrigação absoluta para cada cristão. Se se trata de coisas que licitamente se podem desfrutar, a mortificação não é obrigatória, mas é muito útil e meritória. Contudo, deve-se notar aqui que, para aqueles que tendem à perfeição, a mortificação nas coisas lícitas é absolutamente necessária.

Como pobres filhos de Adão, devemos lutar até a nossa morte, pois “a carne deseja contra o espírito e o espírito contra a carne” (Gál 5, 17). É próprio dos animais seguir os seus sentidos, enquanto que aos anjos compete cumprir a Vontade de Deus; disso conclui um ilustre escritor que nos tornamos anjos, esforçando-nos por cumprir com a Vontade de Deus, e irracionais, se procuramos satisfazer os nossos sentidos. Ou a alma subjuga o corpo, ou o corpo escraviza a alma.

Em vista disso, devemos tratar o nosso corpo como um cavaleiro trata um cavalo bravio, puxando-lhe fortemente a rédea para que não o derrube, ou como o médico que, estando a tratar de um doente, prescreve remédios que lhe são desagradáveis e proíbe-lhe comidas e bebidas nocivas, que ele apetece. Sem dúvida alguma, seria cruel um médico que permitisse ao doente deixar os remédios prescritos por serem amargos e tomar outros, nocivos, por lhe agradarem. Quanto maior não é, pois, a crueldade de um homem sensual, que quer poupar a seu corpo todos os desgostos nesta vida, e expor, assim, sua alma e seu corpo, ao perigo de ter que sofrer por toda a eternidade penas imensamente maiores.

Esse falso amor, diz São Bernardo (Apol. ad Guil., c. 8), destrói o verdadeiro amor que devemos ter para com o nosso corpo; uma tal compaixão com o corpo é, antes, uma grande crueldade, porque, poupando-se o corpo, mata-se a alma. O mesmo Santo dirige aos mundanos, que zombam dos servos de Deus por mortificarem sua carne, as seguintes palavras: “Somos em verdade cruéis para com o nosso corpo, afligindo-o com penitências; porém, mais cruéis sois vós contra o vosso, satisfazendo a seus apetites nesta vida, pois assim o condenais juntamente com vossa alma a padecer infinitamente mais na eternidade”.

Se queremos, portanto, agradar a Deus e alcançar a salvação, devemos corrigir nosso falso gosto: devemos achar satisfação naquilo que a carne detesta e desprezar aquilo que ela apetece. Isso significou Nosso Senhor a São Francisco de Assis, dizendo-lhe: “Se me desejas ter junto de ti, deves ter como amargo o que é doce e como doce o que é amargo”. Não venhas com a objeção que alguns costumam fazer, dizendo que a perfeição não consiste na mortificação do corpo, mas na mortificação da vontade. A isso responde o padre Pinamonti: “Se uma videira não dá fruto [simplesmente] por estar protegida com uma cerca de espinhos, contudo a cerca protege os frutos’, pois ‘onde não há uma cerca, será roubada a feitoria”, diz o Sábio (Ecli 36, 27).

São Luís Gonzaga era de saúde muito melindrosa. Apesar disso, era tão assíduo em crucificar o corpo, que não buscava outra coisa senão mortificação e penitências; e como lhe dissessem uma vez que a santidade não consiste nessas coisas, mas na abnegação de sua vontade própria, respondeu mui sabiamente com as palavras do Evangelho: “Deveis fazer isso e não deixar aquilo” (Mt 23, 23). Com isso queria dizer que, ainda que seja necessário mortificar sua vontade, não se deve deixar de mortificar o corpo, para refreá-lo e submetê-lo à razão. Dizia o Apóstolo: “Castigo o meu corpo e o reduzo à servidão” (I Cor 9, 27). Sem a mortificação da carne, é difícil submetê-la à Lei de Deus.


O mundo e o demônio, são, em verdade, grandes inimigos da nossa salvação; contudo, o maior de todos é o nosso corpo, porque ele mora conosco. “O inimigo que mais nos prejudica é aquele que mora conosco em casa”, diz S. Bernardo (Med., c. 13). Os mais perigosos inimigos de uma fortaleza sitiada são aqueles que se acham no seu interior, pois é muito mais difícil se defender contra estes que contra os que estão fora.

Assim como os mundanos só cuidam em lisonjear seu corpo com prazeres sensuais, as almas que amam a Deus só procuram mortificar a sua carne tanto quanto possível. São Pedro de Alcântara assim fala a seu corpo: “Fica certo de que nesta vida não te deixarei descansar; só tribulações serão tua partilha; mas quando estivermos no Céu, desfrutarás de uma paz que não terá mais fim”. Nesse mesmo espírito procedia Santa Maria Madalena de Pazzi que, pouco antes de sua morte, podia afirmar que não se lembrava de ter jamais encontrado alegria fora de Deus.

Leiamos a biografia dos Santos, consideremos suas penitências e envergonhemo-nos de ser tão medrosos e comedidos na mortificação de nossa carne.

Mas eu tenho uma saúde muito fraca, me dirás, e meu confessor me proibiu todas as penitências. Pois bem; em tal caso deves obedecer; mas ao menos aceita resignadamente todos os incômodos que teu estado corporal te ocasionar; suporta alegremente todas as penas que a mudança de frio e calor traz consigo. Se não podes mortificar teu corpo com penitências, ao menos renuncia de vez em quando a um prazer lícito. Quando São Francisco de Borja se achava na caça, fechava os olhos no momento em que o falcão se apoderava de sua presa, para se privar do prazer que essa vista lhe causava. S. Luís Gonzaga também evitava olhar para as representações a que devia, às vezes assistir.

Por que não poderás também tu, alma cristã, praticar semelhantes mortificações? Se negares a teu corpo satisfações lícitas, não ousará reclamar ele outras ilícitas; se, porém, te entregares a todos os prazeres lícitos, te procurarás em breve deleitações ilícitas.
Um grande servo de Deus, o padre Vicente Carafa, da Companhia de Jesus, diz que Deus nos concedeu as alegrias deste mundo não só para que delas desfrutemos, mas também para que tenhamos ocasião de oferecer a Deus um sacrifício, privando-nos delas por Seu amor.

É verdade que algumas inocentes alegrias são mui próprias para auxiliar a nossa fraqueza humana e nos dispôr para os exercícios espirituais; contudo, deves estar persuadido de que os prazeres dos sentidos por si são venenos para a alma, porque eles a prendem às criaturas; por isso se deve gostar desses prazeres como se usa fazer quando se toma veneno. As plantas venenosas, quando devidamente misturadas e tomadas em pequena quantidade, são às vezes úteis à saúde do corpo; mas são sempre e permanecem veneno. É o que se dá com os prazeres mesmo lícitos.

Por essa razão, só com grande precaução e moderação é que se pode desfrutar deles sem apego, e só por necessidade, com a única intenção de se poder servir melhor a Deus.
Além disso, devemos tomar cuidado para que, com o esforço de preservarmos o nosso corpo de doenças, não deixemos desfalecer a nossa alma, que está sempre doente, não se mortificando a carne. “As doenças do corpo me causam compaixão, diz São Bernardo (Ep. 315), porém, maior compaixão me causam as doenças da alma, que são mais perigosas e mais para temer”.


Oh! Quantas vezes um mal estar do corpo não nos serve de pretexto para nos concedermos certas liberalidades de que não temos nenhuma necessidade! “Um dia deixamos a oração porque sentimos dor de cabeça, diz Santa Teresa d’Ávila (Cam. da perf. , c. 10), no outro dia porque a tivemos no anterior, e no terceiro dia para que não nos volte a dor de cabeça”.


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