quarta-feira, 1 de abril de 2015

Os Instrumentos de Suplício - Parte III





VII- OS FLAGELOS

Do começo da vida até ao momento da morte, Jesus teve sempre diante dos olhos a Sua Paixão sangrenta. Qual um artista que traz incessantemente consigo, numa gestação dolorosa, o ideal de que fará a sua obra prima.

Para Jesus, este grande drama da Paixão tem cinco atos principais: Ele os enumera, pormenoriza-os e sobre eles freqüentemente comenta na intimidade da sua conversação com os Apóstolos. “O Filho do Homem, diz mais de uma vez aflitivamente, será traído (e ai daquele que O trair!): em conseqüência dessa traição será entregue aos príncipes dos sacerdotes e aos anciãos, que por sua vez O entregarão aos gentios”. E aí está o primeiro ato. Depois será escarnecido, posto a ridículo. Et illudent ei. Ludibria-lO-ão, divertir-se-ão à Sua custa cinicamente. E nesta palavra, como num espelho profundo onde se refletissem cenas distantes, Jesus vê se desenrolarem todos os ultrajes do corpo da guarda, do Pretório, do palácio de Herodes, até a sinistra irrisão da coroa e do título real afixado à cruz: é o segundo ato. O terceiro cifra-se numa palavra: Et conspuent eum: cuspir-Lhe-ão em cima. É um traço que O atormenta antecipadamente, frisa-O Ele com dolorosa precisão. Et flagellabunt: será flagelado, açoitado como um escravo ou um animal malfazejo: é o quarto ato. Após todas essas cenas, todas essas orgias de sangue, o quinto ato termina no Calvário. Assim, como em cruel escorço, eis toda a Paixão do Cristo, tal qual O preocupa e O angustia de antemão.

A traição. As zombarias. Os escarros. Os flagelos. A cruz.

Tais são os cimos que Ele tem de galgar em menos de dezoito horas. Que profundezas de humilhações ser-Lhe-á forçoso atravessar para atingi-los! Flagellabunt eum! A flagelação parece ser, à luz da reflexão, uma cruel inutilidade: porque essa tortura suplementar a quem vai padecer a morte? A flagelação pode quando muito compreender-se como um castigo destinado a punir e a escarmentar. Mas, para um condenado, não passa isso de um ato de selvageria. Aturou-o Jesus. Tão bem o haviam compreendido os Judeus que, na conformidade da sua lei, ratificada por Deus, tinham que limitar no número dos golpes, trinta e nove, e o lugar onde se deviam aplicar esses golpes estava designado: as espáduas e o peito do réu. Jesus não teve o benefício da Sua lei nacional. Estava entregue aos gentios: ora, os gentios, mais bárbaros, mais cínicos, mais próximos dos baixos instintos, a despeito da sua civilização, não entendiam essas reservas no modo do castigo.

Ó Jesus! Fostes pois inteiramente despido e atado assim a uma coluna, com as mãos presas pela frente a uma argola, e o Vosso corpo se dobrava dolorosamente em dois! Quanto tempo durou esse horrível suplício? Qual foi o número dos golpes? Sabemos que eram gentios que batiam, que nenhuma lei limitava os golpes; – que eles eram estimulados pelos judeus; – que o homem entregue perdera toda reputação; – que já lhes era entregue em estado deplorável, coberto de poeira e de escarros, como um louco indigno de compaixão, um sedutor, um mágico; – que Pilatos, na sua cruel política, pedira um castigo de preferência severo; – que eles, os gentios, não queriam ficar atrás relativamente ao que fôra feito na noite precedente pela guarda de Caifás; – que, finalmente, eram soldados grosseiros, ávidos de espetáculos sangrentos.

Sabemos também que não se utilizavam varas para os estrangeiros e os escravos, mas sim flagelos engrossados de nós ou eriçados de pontas. É provável portanto que aqueles verdugos não se tenham contentado com bater só no lado de trás do corpo, porém que, quando a sua Vítima ficou ensangüentada desse lado, a tenham cruelmente virado e sulcado de golpes, da cabeça aos pés o Divino Cordeiro a sangrar e a gemer sob os flagelos. Supra dorsum meum fabricaverunt peccatores. Lavraram-me as costas todas. Prolongaverunt iniquitatem suam. E prolongaram a sua cruel prática (cf. Sl 128, 3).

Aí estão o lugar e a duração já indicados. A planta pedis usque ad verticem, non est in eo sanitas, nem um só lugar sem laceração, da base ao vértice. Vulnus et livor et plaga tumens. São só feridas, rasgos lívidos, chaga túmida (cf. Is 1, 6). Como designar melhor os efeitos de uma longa e cruel flagelação? Nenhum dos suplícios suportados pelo Filho do Homem na Sua Paixão podia produzir efeitos semelhantes. E sob o dedo do profeta se remata a sinistra pintura: “Já não tinha forma, nenhuma beleza, o rosto está como suprimido, encolhido, aniquilado por aquela horrível dor; flagelado, açoitado como o último dos homens, assemelha-se o Seu corpo ao de um leproso; exangue, parece um galho mirrado que sai de uma terra seca. Podem-se-Lhe contar os ossos, postos a nu. Faz mal à vista, a gente desvia a cabeça, é um homem açoitado por Deus: açoitado, que digo? Ele está é triturado” (Isaías 53).

Estes pormenores não convêm senão à flagelação. Por que a quis Deus tão longa, tão cruel, tão especialmente horrível? Por que essa pintura do Profeta tão pungente, tão realista? Por que de per si constitui ela um ato do drama lúgubre? Por que acrescentou Ele que de antemão ela faz experimentar ao Filho do Homem um arrepio involuntário? Os que conhecem o terrível mistério da depravação humana e as perversões de uma carne de que Deus queria fazer um invólucro radioso da alma pura, talvez compreendam os horrores da expiação divina.

Em duas circunstâncias memoráveis Deus alçou-se contra a carne culpada: no dilúvio, que cobriu o mundo corrompido, e em Sodoma e Gomorra, que inflamaram-se numa noite, quais sinistros archotes. A mesma corrupção existe hoje em dia: se não tivéssemos a onda de Sangue Divino que correu na coluna, o mundo subsistiria ainda?


VIII - A COROA DE ESPINHOS

Jesus emite várias afirmações no decurso da Sua Paixão. Duas entre outras são nitidamente formuladas de modo que não deixam lugar a dúvida alguma. Ao Sumo Sacerdote que o intima a de clarar se é o Filho de Deus, o Cristo bendito, o Messias esperado: Vos dicitis, quia ego sum. Dizeis bem, sim, Eu o sou. A Pilatos que Lhe pergunta visivelmente perturbado: És então verdadeiramente Rei? Responde Ele: Tu dicis, quia rex sum ego. Sim, dizes bem, Eu sou Rei.

Sim, Ele é Deus!
Sim, Ele é Rei!
Morrerá por estas duas verdades!

Tão bem se havia apreendido o sentido dessa dupla afirmação, que é precisamente esse duplo caráter de Deus e de Rei que é feito objeto de todas as derisões e zombarias no drama da Paixão. Efetivamente, quer essas zombarias venham do povo: Vamos! Se é o Filho de Deus que desça da cruz!; quer venham dos sacerdotes: Vamos! Tu que destróis o Templo para levantar outro em três dias!; quer caiam dos lábios de Herodes que o reveste da túnica branca, ou dos soldados: Salve, rei dos judeus!...; essas zombaria tendem todas a ridicularizar o Deus e o Rei.

O Deus, em duas das Suas mais altas prerrogativas: conhecer o futuro e escapar à morte: Cristo, profetiza quem te bateu! Salvou os outros, não se pode salvar a si. O Rei, na coroa irrisória que Lhe enterram na cabeça, e no próprio título que apõem ao topo da cruz. Quem poderia ter dado àqueles soldados estrangeiros a cruel idéia da coroação, a não ser aquela dupla corrente que agitava todos os espíritos no momento da Paixão? Ele se diz Filho de Deus, pois havemos de vê-lo. Acaba Ele de declarar a Pilatos que é Rei... Acudi todos, ó amigos; nós vamos fazer a cerimônia da coroação. E toda a coorte é convocada para assistir; enfileiram-se em torno da Vítima. Acaba esta de sair desfalecente da flagelação; mal teve tempo de vestir a túnica. O Sangue das feridas permeia-Lhe as roupas. Ele chega curvado ao máximo, tremendo, pálido e ensangüentado, como o vindimador que espremeu sozinho o lagar.

Despem-nO e fazem-nO sentar no meio do pretório. Havia no corpo da guarda um frangalho de clâmide púrpura. A clâmide era antes de tudo um manto militar; quando de púrpura, era uma vestimenta real. Assim, daquele homem caído, desfeito, sem aparência humana, fazem, burlescamente, um rei de comédia. Como Lhe colocaram aquela clâmide nos ombros? Que é que restava daquele trapo de púrpura? Qual era a postura humilhada de Jesus sob aquele ridículo manto? Ignoramos estes pormenores, mas certamente tudo deve ter sido ajustado de maneira irrisória. Pois não era ridículo que O queriam tornar? E, quando o manto foi assim lançado de modo que constituísse uma zombaria, acharam de cuidar da coroa.

Cortam a toda a pressa – porque há que apressar-se: Pilatos está esperando, os judeus impacientam-se nas ruas – cortam, pois, às pressas, um molho de espinhos. Trazem então o espinheiro e jogam-no brutalmente sobre a cabeça do Rei Jesus. É mister, entretanto, dispô-lo em coroa. Como o feixe espinhoso não segura naquela cabeça que se inclina a seu pesar debaixo daquele doloroso fardo, batem-Lhe com força em cima. Ela se enterra então profundamente, aquela coroa espessa e rubra de Sangue. Todo o alto da cabeça fica coberto: é como um capacete cujas pontas aceradas atravessam a cabeleira, escalpelam o crânio, penetram na carne e fazem à volta toda da fronte uma auréola de Sangue.

Grossas gotas pingam pouco a pouco, molhando todo o rosto tão pálido, indo perder-se na barba poeirenta e suja. Nada falta: eis ali o Rei, a corte está formada, o desfile dos cortesãos vai começar. Zombar da realeza de Cristo é negá-la. O mundo não pode admitir que alguém lhe seja superior, porque este teria o direito de fiscalizar-lhe as máximas. E aí está porque a realeza do Cristo será sempre escarnecida ou negada. O processo da zombaria é o mais conforme aos costumes mundanos.
A zombaria é uma malignidade e uma fraqueza. Zomba-se daquilo que não se pode aniquilar, esperando assim fazê-lo desaparecer sob os sarcasmos. Poucos homens, mesmo superiores, resistem à zombaria. O ridículo mata. Jesus e a Sua obra por excelência, a Igreja, sobrepõem-se ao ridículo, e é essa uma prova de divindade: que a Igreja atravesse o mundo sempre a mesma, vitoriosa.


IX - A CANA

A coroação de espinhos foi um episódio imprevisto da Paixão. Uma crueldade que não entrava no primeiro programa. Uma idéia satânica germinou no cérebro dum legionário: é logo posta em execução com toda a impetuosidade. O fito é menos o de fazer sofrer a Vítima do que o de ridicularizá-la. E tudo é sabiamente organizado neste sentido. O Cristo está sentado, despojaram-nO das vestes: o corpo chagado, lavrado de golpes, está coberto apenas por aquele molambo de púrpura, sujo e curto. Ataram-Lhe as mãos pela frente e na mão direita colocam-Lhe um “cetro” para que o traje de rei ficasse completo. Esse cetro é um pedaço de cana...

Os soldados, que já se divertiram com a esdrúxula vestidura de rei, começam a aproximar-se-Lhe. Com todas as exterioridades de um respeito oriental, dobrando o joelho e prostando-se diante de Jesus, saúdam-nO ironicamente: Ave, Rex Judaeorum. Depois, nessa atitude, de joelhos e próximos dEle, eis que, de repente, um Lhe lança no rosto uma cusparada, outro se ergue e Lhe dá uma bofetada: faria o choque escorregar a cana de entre os dedos trêmulos do Mestre? Um terceiro segura-a, levanta-a se caiu, e dá com ela uma bordoada na cabeça coroada de espinhos, em meio a risadas, a vivas e aclamações. Parecendo engraçada a brincadeira, cada qual lhe disputa um lugar. Estava ali toda uma coorte; qualquer que tenha sido o número de soldados, havia de certo bastantes atores dolorosos naquele drama improvisado para se supor que as pauladas e os hediondos escarros se tenham sucedido sem trégua, em meio às aprovações ruidosas dos espectadores.
Qual poderia ser então a face, a cabeça, o corpo de um pobre já a escorrer sangue, que se torna em alguns instantes o alvo único de tantas bofetadas e ultrajes? Recusa-se a imaginação a ver e a contar. Breve já não há diferença, como cor, entre a carne e o manto, entre o rosto e a coroa. Tudo é rubro, tudo é púrpura, tudo é Sangue. No meio daquele pretório cercado de soldados, na maioria jovens, violentos, de risos grosseiros, um ser lastimável está abatido, retalhado de golpes, a sangrar por todos os lados; já não é mais que uma massa vermelha, repugnante como uma carne esfolada. Ecce Homo: eis o homem; Ecce Rex vester: eis o vosso Rei! Eu vo-lo trago, diz Pilatos à multidão que se agita no sopé da grande porta encimada por um terraço.

Jesus aparece no Seu vestuário de Sangue, mal coberto, envergonhado do Seu manto em frangalhos, com a cabeça torturada pela coroa de espinhos, com a cana a Lhe tremer nas
mãos.

Eis o homem!

E todavia já se Lhe não distinguem os traços humanos através da máscara de Sangue coagulado; só os dois olhos fitam dolorosamente aquela multidão. “Jerusalém, Jerusalém, quantas vezes Eu quis reunir os teus filhos em torno a mim, como a galinha o faz aos seus pintinhos!” Nesse momento eles estão reunidos e em torno dEle, mas de todas as bocas só se desprende um clamor: Tolle, tolle! Fora, tirai-O! Crucifige, crucificai-O! Popule meus, quid feci tibi? Ó meu povo, que te fiz Eu? Murmura o Coração em Sangue do Mestre. Há muitas vezes palavras íntimas que nos são dirigidas por Jesus no segredo da alma, em meio aos apelos das nossas paixões. Porque o drama é o mesmo: Jesus está diante de mim. A turba das más inclinações rebrama. E não raro lançamos a essa turba o pobre corpo ensangüentado de Jesus, como Pilatos o vai fazer daí a instantes.

Tolle, tolle, crucifige eum: tirai-O, crucificai-O! Na igreja das Damas de Sião, em Jerusalém, no topo das ruínas daquele arco triunfal por cima do qual foi assim apresentado Jesus, Rei coroado de espinhos, colocaram, aos pés de uma imagem do Ecce Homo, uma coroa de ouro, um diadema real: uma homenagem, uma reparação.

Rex esto: sede o Rei, ó Cristo, sede o meu Rei primeiramente!

No nosso coração, onde o mundo tem o seu cantinho afagado e fechado, Jesus tem dificuldade reinar com o Seu manto de púrpura irrisório, Sua coroa de espinhos e Seu cetro de cana. Mas é preciso. Rendamos algumas vezes a Jesus homenagens secretas: ponhamos-Lhe em espírito uma coroa aos pés. Ele o merece.


Rex esto: sede Senhor, em seguida, Rei de todos. Ai! Será o pequeno número que Vos aceitará tal como estais hoje no terraço. Rei de dor, Rei de comédia, Rei escarnecido, posto a ridículo. Mas sempre Rei.

(Perroy, Pe. Luís. A Subida do Calvário. Editora Vozes)

Um comentário:

  1. Não há dúvida que quem mais sofreu no mundo foi Jesus Cristo e sofreu por amor, para nos salvar. Por isso ofereçamos ao Pai Eterno o nosso sofrimento por intermédio de Jesus, que é o nosso Salvador. Que o bom Deus nos ajude.

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