sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

O Distributismo - Gustavo Corção





O DISTRIBUTISMO

Não se pode dizer, rigorosamente, que Chesterton tenha uma doutrina social. Como já disse atrás ele é mais um homem de ideias do que um doutrinador, e o mérito de sua obra consiste na manipulação dessas ideias, na organização particular e original dos ar­gumentos, a serviço da doutrina clássica. Seu distributismo não é mais do que a doutrina social da Igreja apresentada de um modo chestertoniano, caracterizando-se pela acen­tuação de certos pontos e não pelo conteúdo. A ideia central é a da defesa da pequena pro­priedade e da pequena empresa contra o gi­gantismo, que já no seu tempo ameaçava a sociedade, e que no nosso tornou-se uma calamidade declarada. Afirmava o direito à posse, não como uma concessão, mas ousada­mente, como outorgado por Deus; admitia o capital enquanto indispensável reserva, mas não admitia, de modo algum, o capitalismo, porque a principal característica desse regime a seu ver está na raridade e não na abundân­cia do capital. O capitalismo é uma situação em que quase ninguém tem o capital e em que quase ninguém possui, Não "são a exis­tência e o uso do capital que constituem o capitalismo, é antea a sua quase inexistência ou seu abuso. Por isso, nos tempos de moço, teve Chesterton a idéia de rejeitar o nome de capitalismo como impróprio e contraditório, propondo em seu lugar o de pauperismo ou proletarismo já que sua principal conseqüên­cia é sem dúvida a difusão da miséria e do proletarismo escravizado. Mas reconheceu que sua denominação dava lugar a certas confusões quando se referia, por exemplo, ao pauperismo de Lord Northumberland. Voltou à designação corrente; mas de vez em quan­do, ao longo de sua obra, manifesta uma visí­vel antipatia: "eu não gosto dessa palavra; é feia."
O capital em si é inteiramente admissível, pertença ele a um só ou a uma corporação, ao Estado ou a uma sociedade anônima; o capital, em si, existirá sempre por uma razão extremamente simples: o ritmo da produção não é igual ao ritmo do consumo. A economia privada gasta-se numa lixa cotidiana e con­tínua, pois os homens comem, vestem-se e moram todos os dias. A produção, ao contrá­rio, tem geralmente um ritmo mais largo, que no campo obedece às quatro estações, e nas cidades, à organização industrial. Por isso, uma vez que o homem gasta continuamente, e fabrica descontinuamente e em prazo lon­go, torna-se inevitável o acúmulo de reservas, como nas represas e nos açudes. Negar o ca­pital como legítimo instrumento eqüivale a negar o armazém, o estoque, o saco, a gaveta e o bolso. Eqüivale a obturar todos esses bu­racos onde o homem, como a formiga, guarda as reservas de seu trabalho.
O que Chesterton combate é o capitalis­mo, e combate-o por esse motivo que pode parecer original: porque o capitalismo é, de fato, contrário à idéia de posse. Considerarv do o capitalismo nas suas origens e causas, estudando o ambiente do liberalismo e apre­ciando o fenômeno de dissociação entre o o conceito de posse e o de responsabilidade moral, concluímos que o capitalismo foi ge­rado por um desregramento da propriedade e da liberdade; mas tomando o fenômeno tal como hoje se apresenta, considerando-o um fato, observamos que seu caráter atual é he­terogêneo com suas origens, o que não é de espantar, tratando-se de um erro prático, que é necessariamente antinômico. O capita­lismo, inteiramente desabrochado, tornou-se um paradoxo em relação às suas origens: a hipertrofia da idéia de posse tornou-se uma atrofia; a livre competição degenerou em pri­vilégio. À primeira vista não parece existir privilégio, uma vez que a estrutura politica­mente democrática assegura a qualquer cida­dão as mesmas oportunidades e direitos de despojar os outros cidadãos. Na realidade esse julgamento é falso e resulta de uma con­fusão entre democracia política e democracia econômica. O privilégio é diferente daquele que distinguia a nobreza da plebe, mas con­tinua a ser um privilégio mais ou menos aná­logo ao que distingue dos homens comuns um jogador de xadrez excepcionalmente do­tado. Estando o domínio da economia re­duzido a uma técnica ou uma arte, e não havendo nenhum compromisso moral, o capitalista é qualquer coisa como um campeão de bilhar ou de xadrez; é um especialista.
Não insisto na amoralidade ou na imorali-(te.de dos processos que permitem o vertiginoso enriquecimento, mas insisto na especialidade técnica que faz do capitalista um privilegia­do. Se o direito de posse é um direito comum não pode ser um privilégio. Logo, o capita­lismo, como tal, de fato, é uma negação do direito à propriedade privada. Talvez seja negativo o dom principal do moderno herói das finanças; talvez seja simplesmente uma falta de escrúpulos; ou talvez seja uma espe­cial falta de imaginação. Um homem normal (e normalmente dotado de escrúpulos e ima­ginação) ou recua diante de certas situações, ou distrai-se apreciando o desenho de uma flor; e basta esse pequeno colapso em sua defesa para que o obstinado, que não recua ou não se distrai, ponha um pé adiante e. tome conta de um pequeno pedaço dos três alqueires que o outro não soube guardar. É verdade que o outro não soube guardar. Mas se ganhar é uma técnica, o guardar é tam­bém uma arte em que nem todos são capazes.
Eu disse acima que o capitalismo atual está em contradição com suas origens e com a idéia de propriedade. A contradição vai ainda mais longe e chega até o nível da psico­logia de seus habilidosos campeões. O capi­talista hoje, sendo um dionisíaco, prende-se menos à propriedade concreta do que à ação. O que.ele quer acima de tudo é o domínio sobre os homens, o poder conferido marginal­mente por um estado ainda tolerante nessamatéria. Tivesse ele o apetite das coisas con­cretas, o mal não seria .tão grande, porque essas coisas encontram seus limites mais de­pressa que o poder. Um homem não pode comer muito mais do que um pobre; nem muito melhor. E o capitalista moderno é ge­ralmente sóbrio. O pobre, nos delírios de sua miséria, imagina o ricaço com um enorme guardanapo no pescoço, a se fartar das mais esquisitas iguarias; mas na verdade o milio­nário é um pobre sujeito que tem uma dieta rigorosa e que vive de pílulas. Também não pode morar em muitas casas nem sustentar um harém, porque os incômodos que essas coisas trazem, cedo ou tarde, o impelem a um esquema mais simples de duas ou três casas e de uma só mulher como reserva clandesti­na, para não cair na excessiva simplicidade da monogamia. O rico, em suma, é um ho­mem de costumes muito mais moderados do que alguns oficiais de gabinete ou subchefes de seção nas repartições públicas.
O capitalista moderno é um homem em­preendedor que muitas vezes acorda cedo, que quase sempre trabalha pelo amor ao tra­balho, e que tem a mística das realizações; e é nisso que consiste sua insanidade e sua monstruosidade. O capitalista, em poucas palavras, é um chefe de pequena república socialista enquistada no corpo de uma nação.
O distributismo de Chesterton (que tinha por divisa, entre outras, a fórmula rural que escolhi para título deste livro, cuja capa foi tirada de um desenho do próprio Chesterton) combatia o capitalismo pelo que esse regime tem de semelhante ao socialismo no que se refere ao direito de propriedade e à dignidade humana. Chesterton pugnava pela pequena propriedade e pela pequena empresa. Reco­mendava, com grande escândalo de um jornal, que recusou um artigo seu a esse respeito, o boicote sistemático dos grandes armazéns. E tomava como sua uma palavra de Francis Bacon: "A propriedade é como o estrume, só é boa quando espalhada".

(Corção, Gustavo; Três Alqueires e uma Vaca)

Nenhum comentário:

Postar um comentário