quinta-feira, 15 de novembro de 2012

A Inevitável Metafísica




 

Por Gustavo Corção



Perdoe-me o leitor mais este convite que hoje trago para uma con­versa em torno de temas filosóficos; e não julgue que eu esteja buscando, nesta seção do jornal, um refugio ou um bálsamo que me compense dos sofrimentos que, nas outras colunas, dão-me os fatos que tenho de comentar. Não oculto que mais de uma vez, nesses últimos tempos, fui atacado pela tentação de deixar o mundo correr sem a pretensiosa necessidade de pesponto meu no grande pano da história. Com a boa desculpa dos serviços já prestados, em termos de anos ao menos, tal e qual como fazem os homens de vocações mar­ciais, eu vestiria um pijama, um modesto pijama de jornalista ou de professor aposentado, e mergulharia num hobby que me trouxesse a atenção presa e a cólera distraída durante os dias que ainda tenho de saldo na minha conta corrente. Voltaria, por exemplo, a jogar xadrez. Na semana passada, um tentador, na amável pessoa do cearen­se Ronald Câmara, enviou-me um livro muito interessante intitula­do Peões na Sétima, no qual, entre outras curiosidades enxadrísticas de maior relevância, o autor teve a amabilidade de abrir um capítulo para uma partida que joguei, em 1930, com o campeão argentino, e que, felizmente para mim e para a pátria, terminou num honroso empate. 

O livro do sr. Ronald Câmara tocou-me a mola da sauda­de, a outra do amor próprio, mas não conseguiu fazer-e voltar ao tabuleiro, mesmo porque — talvez o leitor não saiba — não há jogo que exija mais mocidade do que o xadrez. Aparentemente, o nobre jogo é um puro exercício mental, sem nada de músculos e nervos. Na verdade, porém, o que joga não é a inteligência especulativa, é a inteligência ligada diretamente à memória e à imaginação, que são faculdades mais sensíveis do que puramente racionais. Não. A filosofia não é trazida aqui como uma pura distração do espírito, ou como uma espécie de jogo de conceitos. Por incrível que pareça, há uma interligação íntima, forte, vital, entre os problemas que temos levantado em torno da história da filosofia e os outros que comentamos em tons diversos; entre a noção de matéria c forma, por exemplo, e os debates sobre nacionalismo, petróleo, internação da capital, etc. Eu me exponho ao juízo severo e automá­tico dos moços que discutem desenvolvimento, finanças, educação, urbanismo, alimentação estudantil, etc. etc. se disser que uma das coisas que mais falta no Brasil é metafísica.

Basta, aliás, soltar este vocábulo — metafísica — para logo se de­sencadear nos jovens cérebros uma série de ações transitivas, como nos robôs, terminando numa fórmula fulminatória ou num sarcasmo este­reotipado. Nesta altura dos acontecimentos, recomendar a metafísica, tentar recolocar a filosofia no trono da cultura, deve soar nos jovens ou­vidos como uma insólita proposta de regresso à pedra lascada. E como «dês são muito moços, têm necessariamente razão, uma vez que lá na doutrina que esposam, tudo é músculo. Insisto. Há falta de filosofia, fal­ta de linha com que se cosam as contas soltas que são os fatos, os dados. Os que atribuem o atraso do Brasil e de outros países ao imperialismo do capital colonizador, e que se riem de mim porque professo a neces­sidade da metafísica, não sabem que estão fazendo metafísica em tudo o que disserem, desde que creiam, por exemplo, que os termos corres­pondem a conceitos, que por sua vez correspondem a entidades reais; e desde que, mal ou bem, usem a noção de causa. Eles talvez pensem que metafísica é algo que se prende à pedra filosofal ou que se relacione com maus-olhados, gatos pretos e saleiros entornados. Todo mundo que es­tudou ao menos os rudimentos da nobre ciência das matemáticas sabe que não poderia dar três passos sem antes firmar as bases e aprimorar as definições. Ora, há coisas mais fundamentais e anteriores às próprias definições matemáticas: a noção de definição, por exemplo, a de princípio, de causa e de ser, são anteriores a qualquer das ciências positivas. Pre­cisam ser disciplinadas, postas em ordem, sondadas, estudadas. Onde? Em que matéria estudará o moço a noção de causa? Na geografia? Na história natural? Ou, quem sabe se pensam que é na gramática que se encontra a explicação do conteúdo dos termos? Concluirão os jovens marxistas malgré enx mêmes, que devemos banir do espírito tais cogita­ções, mesmo porque não temos espírito para recebê-las?

Julgo que é nesta linha, a da retração mental e da condensa­ção de todos os assuntos do universo em alguns poucos, como por exemplo o tratado de Roboré ou o petróleo do recôncavo, que aliás variam com o tempo numa curiosa correlação com os ventos da Rússia, julgo que é nessa direção, dizia eu, que devemos promover o enterro definitivo da metafísica. Não se fale mais nisso, e acabou-se.

A questão é que não há meio de não se falar mais naquilo tudo que a metafísica implica, e se alguém quiser levar a purificação men­tal até a abstinência completa das noções de causa, de unidade, de ser, etc. não terá outro remédio senão ficar enrolando os dedos, num silêncio discretíssimo e total, como aconselhava o mesmo grego aos céticos. O que resulta de tal atitude, sobretudo se ela tende a se ge­neralizar, é o que se vê: a sociedade que se abstém de filosofia passará a filosofar mais do que nunca para provar que deve abster-se, e sua filosofia será cada vez pior. É de uma temeridade espantosa preten­der que deva ficar implícito ou inconsciente, na vida intelectual, justamente a parte basilar de que depende todo o teor da cultura.

A moderna cultura, imbuída de critérios nominalistas, não de­monstra muito anseio de unidade, de organicidade; e quando mos­tra tal preocupação, é nas ciências positivas, na soma delas, ou nas ci­ências sociais (a sociologia já foi candidata à regência da cultura) que se procura a alma de uma civilização. Na verdade, o que dá forma e unidade a uma civilização, a um todo cultural de dimensões histó­ricas, marcado por certos ideais concretos, só pode ser uma filosofia e ainda mais, uma filosofia com uma metafísica na base. O mundo em que vivemos, se tem alguma unidade e alguma forma, ainda que o não queira, é da filosofia que professa ou que usa nas fórmulas de metafísica implícita ou inconsciente, que tira aquela consistência.

Não digo que seja necessário para a perfeição de uma quadra histórica, o estudo pormenorizado da filosofia por parte de todos os seus habitantes. Basta que o diapasão correto esteja no ar, que os va­lores sejam propostos à opinião pública na sua justa posição, que as fórmulas mais científicas da metafísica produzam ecos culturais de senso comum, de geral assentimento; basta a retificação das pontas, dos vértices da sociedade, para que a grande maioria de vontades ou inteligências disponíveis, neutras, acompanhe o passo da dança. Sob o ponto de vista das causas materiais (que não convém nunca subes­timar ou desprezar) é verdade que o mundo é conduzido por marés poderosas que vêm das chamadas massas populares. E é verdade que nesses movimentos de massas, à medida que sobe o número, baixa o teor de racionalidade, de liberdade, de específica humanidade. San­to Tomás de Aquino observa que é perfeitamente lícito o emprego de um moderado determinismo, ou de um probabilismo, quando se trata de grandes números. Mas não é menos verdade que essa mes­ma massa, esse mesmo grande número estão sujeitos e são sensíveis às formas propostas por uma minoria ativa. Não há exemplo mais estridente disto do que o próprio marxismo, que se tornou uma espécie de bambolê com que milhões de homens dançaram, tendo sido lançado por uma pequena fábrica alemã. A história vai assim, aos trancos e barrancos, dependendo em cada instante do fator que prevalece. Ora é a idéia, conduzida por uma minoria; ora é a inércia, o ímpeto obscuro e irracional dos movimentos coletivos desenca­deados em período anterior por alguma idéia de algum pequeno grupo. E nesses movimentos irracionais das massas é preciso incluir muitas academias de aparentes líderes da idéia mal assimilada.

Aqui em nosso meio, os movimentos do marxismo estudantil pertencem mais à causa material do que à formal. São repetições caligráficas, pueris, do que não chegaram a aprender, e do que pro­fessam para terem ar de quem está inserido no grande ciclo, ou para fugirem à solidão das perplexidades sem eco.
O ponto em que insisto é o da importância da metafísica na estrutura da sociedade. Só ela, como teologia natural, pode dar uni­dade a uma cultura, e algum entendimento entre os homens.

Mas há, evidentemente, uma metafísica verdadeira e outra errônea; uma boa e outra má; uma genuína e outra falsificada. Creio que a pior, a mais falsa e mais errônea das metafísicas é aquela que se faz para se de­monstrar que não há metafísica ou que foi superada a necessidade dela.


Diário de Noticias, 21 de fevereiro de 1960




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