sexta-feira, 20 de julho de 2012

Cristo deveria sofrer na cruz?


A Crucificação, Simon Vouet, 1622, Gênova
 Parece que Cristo não deveria sofrer na cruz:

1. Com efeito, a realidade deve corresponder à prefiguração. Ora, no passado, todos os sacrifícios do Antigo Testamento ocorreram como figura de Cristo e neles os animais eram mortos pela espada, sendo depois cremados. Logo, parece que Cristo não deveria morrer na cruz, mas, de preferência, pela espada ou pelo fogo.

2. Além disso, Damasceno diz que Cristo não tinha de assumir “sofrimentos ignominiosos”. Ora, a morte de cruz parece absolutamente repugnante e ignominiosa; tanto assim que diz o livro da Sabedoria: “Condenemo-lo a uma morte infame” (2, 20). Logo, parece que Cristo não deveria sofrer a morte de cruz.

3. Ademais, falando de Cristo, diz o Evangelho de Mateus: “Bendito seja, em nome do Senhor, aquele que vem!” (21, 9). Ora, a morte de cruz era uma morte maldita, segundo o livro do Deuteronômio: “O que pende do madeiro é uma maldição de Deus” (21, 23). Logo, parece que não era conveniente Cristo ter sido crucificado.

EM SENTIDO CONTRÁRIO , diz a Carta aos Filipenses: “Ele se rebaixou, tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz”.

Foi muitíssimo conveniente ter Cristo sofrido a morte numa cruz.

Primeiro, como um exemplo de virtude. É o que diz Agostinho: “A sabedoria de Deus tornou-se homem para nos dar exemplo de honestidade de vida. É próprio, porém, da vida honesta não temer o que não deve ser temido. Há, contudo, homens que, embora não tenham medo da morte em si, tem horror a um determinado tipo de morte. Assim, para que o homem de vida honesta não temesse nenhum tipo de morte, teve de lhe ser mostrado na cruz qual a morte daquele homem, pois entre todos os gêneros de morte nenhum foi mais execrável e temível que esse”.

Segundo, porque esse tipo de morte era de máxima conveniência para satisfazer o pecado de nosso primeiro pai, pecado que consistiu em ter ele comido o fruto da árvore proibida, contrariando a ordem de Deus. Assim, foi conveniente que Cristo, a fim de dar satisfação por esse pecado, suportasse ser ele próprio afligido no madeiro, como quem restitui o que Adão roubara, segundo o que diz o Salmo 68: “Então pagarei o que não roubei” (v. 5). Por isso, diz Agostinho: “Adão desprezou uma ordem ao colher o fruto da árvore, mas o que Adão perdeu, Cristo o adquiriu na cruz”.

Terceiro, porque, como diz Crisóstomo: “Sofreu no alto do madeiro e não dentro de casa a fim de purificar até mesmo a natureza do ar. Mas também a terra sentia os efeitos desse benefício, limpa que era pelo gotejar do sangue a escorrer de seu lado”. E a respeito do que diz o Evangelho de João: “É preciso que o Filho do Homem seja levantado” (3, 14) observa Teofilato: “ao ouvires ‘que seja levantado’, deves entender que foi elevado para o alto, a fim de que santificasse o ar aquele que santificara a terra, ao caminhar sobre ela”.

Quarto, porque, por ter morrido no alto da cruz, prepara-nos a subida ao céu, como diz Crisóstomo. Daí ter dito o próprio Cristo conforme o Evangelho de João: “Se for elevado da terra, atrairei a mim todos os homens” (12, 32-33).

Quinto, porque essa morte é adequada à completa salvação do mundo inteiro. Por isso, diz Gregório de Nissa: “A representação da cruz, que se estende por quatro extremidades a partir de um ponto de união central, significa o universal poder e providência daquele que nela está pendente”. – E também Crisóstomo afirma de Cristo na cruz: “Morre de braços abertos, a fim de atrair com uma das mãos o povo antigo e com a outra os que ainda são pagãos”.

Sexto, porque, por esse tipo de morte, designam-se várias virtudes. Assim, afirma Agostinho: “Não foi em vão que escolheu esse tipo de morte a fim de se mostrar mestre da largura e da altura, do comprimento e da profundidade”, das quais fala o Apóstolo. “A largura está representada no madeiro que se apóia transversalmente na parte de cima; refere-se às boas obras porque nele é que se estendem os braços. O comprimento, no tronco que desce da travessa até o chão; nele de certo modo está apoiado, ou seja, mantém-se estável e firme, o que é próprio da longanimidade. A altura está naquela parte do madeiro que se eleva acima da parte transversal, ou seja, onde está a cabeça do crucificado; é a suprema expectativa dos que têm justa esperança. Já a parte do madeiro oculta e fincada na terra e de onde se levanta toda a estrutura significa a profundidade da graça gratuita”. E como diz Agostinho no comentário ao Evangelho de João, “o madeiro no qual estavam pregados os membros do padecente foi igualmente a cátedra do mestre a ensinar”.

Sétimo, porque esse gênero de morte corresponde a muitas figuras. Como diz Agostinho: “Uma arca de madeira salvou o gênero humano do dilúvio das águas; ao se afastar o povo de Deus do Egito, Moisés dividiu o mar com o bastão, vencendo o Faraó e redimindo o povo de Deus; o mesmo bastão Moisés lançou às águas, e de salgadas as tornou doces; com esse bastão faz jorrar da rocha espiritual uma água salutar; e, para vencer Amalec, Moisés mantém os braços abertos ao longo do bastão; e a lei de Deus é posta na arca de madeira do Testamento; de modo que, por tudo isso, como que por degraus, se chegasse ao madeiro da cruz”.

Quanto às objeções iniciais, portanto, deve-se dizer que:

1. O altar dos holocaustos em que se ofereciam os sacrifícios dos animais era de madeira, como consta no livro do Êxodo. Nisso a realidade corresponde à figura. E, como diz Damasceno, “essa correspondência não precisa se dar sob todos os aspectos, pois já não seria semelhança, mas realidade”. – E especialmente, como afirma Crisóstomo, “não lhe decepam a cabeça, como a João; nem é cortado ao meio, como Isaías; a fim de que fosse entregue à morte um corpo íntegro e indiviso, não se dando assim motivo aos que querem dividir a Igreja”. – Em vez do fogo material, porém, esteve presente no holocausto de Cristo o fogo da caridade.

2. Cristo recusou assumir sofrimentos ignominiosos que contivessem falta de ciência ou de graça ou mesmo de virtude. Mas não os que se referem a injúria causada por outros; antes, como diz a Carta aos Hebreus: “Suportou a cruz, desprezando a vergonha” (12, 2).

3. Como diz Agostinho, o pecado é amaldiçoado e, conseqüentemente, assim é a morte e a mortalidade que dele provém. “A carne de Cristo, porém, era mortal, ‘por ser semelhante à carne do pecado’”. Por isso, Moisés a chama de “maldição”, como o Apóstolo a chama de “pecado”, quando diz: “Aquele que não conhecera o pecado fez-se pecado por nossa causa” (2 Cor 5, 21), ou seja, pela pena do pecado. “Nem há nisso maior ignomínia porque o chama de ‘maldito por Deus’. Pois se Deus não odiasse o pecado, não teria enviado seu Filho para assumir nossa morte e a destruir. Confessa, portanto, ter aceito a maldição por nós aquele mesmo que confessa ter morrido por nós”. Daí o que diz a Carta aos Gálatas: “Cristo nos libertou da maldição da lei, tornando-se ele mesmo maldição por nós” (3, 13).

Suma Teológica III, 46, 4.

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