sexta-feira, 11 de maio de 2012

Ateísmo Militante - Parte 1


O Ateísmo Militante
Expressão nova a designar uma realidade também nova. 
 
 
Como fato individual, a negação de Deus é quase tão antiga como a humanidade. Conhecemos os ateus que se abotoam, tristonhos e silenciosos, na solidão de seu deserto interior; conhecemos também os inquietos que se atiram às aventuras de um proselitismo sem glória. Casos isolados, que se multiplicam com freqüência nas civilizações em decomposição.
Como fato social, o ateísmo é um fenômeno inédito na vida da humanidade. A etnografia e a história não conhecem povos sem religião. A observação do velho PLUTARCO encontrou nos estudos mais recentes e mais completos uma confirmação definitiva. “O ateísmo não existe em parte alguma, senão em estado errático”, afirma Quatrefaces.
 
Com o advento do comunismo que, a todo transe, pretende traduzir em realidade social o materialismo dialético de Marx, a irreligiosidade passa a ser o ideal de uma nova civilização, e o combate à divindade, a condição preliminar de seu triunfo na história. Sem extirpar das consciências a crença em Deus e tudo o que ela representa para a grandeza, a paz e a esperança das almas, a humanidade não atingirá a meta de sua evolução na conquista da felicidade. Um ateísmo militante identifica-se assim com o próprio esforço de libertação salvadora. Acenar aos homens com um novo estilo de civilização em que Deus é o grande inimigo e, para levar a termo esta transmutação radical de valores, mobilizar, num titanismo sem escrúpulos, todos os ressentimentos históricos e toda a avidez de paixões violentas, eis a tragédia do comunismo.
 
Um estudo da gênese ideológica do marxismo porá em evidência estas correlações internas e essenciais, que fazem do combate à própria noção da divindade a pedra angular da implantação e conservação do comunismo soviético.
 
I
 
Nos dez anos que precederam o Manifesto Comunista de 1848, formou-se e amadureceu, nas suas linhas mestras, o pensamento de Carlos Marx. Os seus escritos desta época refletem, com as reações pessoais, as influências dominantes que orientam para posições definitivas as primeiras hesitações1. Não se pode compreender o autor do Capital, sem haver analisado a sistematização filosófica, proverbialmente obscura, mas inegavelmente profunda, do pensador da Fenomenologia do Espírito.
 
Kant construíra o seu sistema sobre o dualismo do noumenon e do fenômenon, da coisa em si, incognoscível, e da sua manifestação, revestida das formas do espírito. Daí a antimonias entre o conhecimento e a natureza, o finito e o infinito, a liberdade e a necessidade, o possível e o real, que não raro desfechavam em contradições indisfarçáveis. Hegel pretende evitá-los e, para isso, suprime a dualidade entre o conhecimento e o ser, entre o Espírito e a Natureza. Toda a realidade concentra-se na unidade do Espírito, e a oposição entre sujeito e objeto, não passa de uma oposição do Espírito a si mesmo. Os termos, que parecem contraditórios, quando isolados estaticamente, tornam-se inteligíveis quando mergulhados no dinamismo do pensamento. O espírito está sujeito a um vir-a-ser contínuo que se processa em três momentos: o da afirmação inicial, em que ele se conhece, o da negação em que percebe o seu limite, o da reconciliação final em que apreende a unidade substancial destes dois termos. Em outras palavras, o espírito movimenta-se num ritmo ternário de tese, antítese e síntese. A contradição e o conflito é o aguilhão do seu progresso. E este movimento interno do pensamento constitui a dialética.
 
Como o espírito é co-extensivo ao ser, todo o racional é real e todo o real é racional. A dialética rege o pensamento como a história. E uma lógica que analisa rigorosamente o espírito não se distingue da metafísica. As diferentes formas do vir-a-ser universal são outras tantas manifestações da única realidade fundamental – o Espírito. Alienando-se de si, como num sono, é Natureza; consciente de si, é Estado; reveste-se de formas sensíveis na Arte, de pensamentos exatos na Filosofia, de representações míticas na Religião.
 
Em síntese: uma única realidade, o Espírito, submetida a uma evolução, regida pela necessidade interna de uma dialética em que a luta desempenha um papel primordial: eis a intuição filosófica, que, desenvolvida por Hegel com uma amplitude de proporções, uma coerência de travação interna, uma elevação espiritual “desinteressada”, raras na história da filosofia, se impôs indiscutivelmente ao pensamento alemão com “uma importância de influência que não é possível medir”.
 
Ao chegar a Berlim não se subtraiu o jovem Marx a esta fascinação empolgante. Na primavera de 1837, pouco depois de chegar à capital, uma doença obrigou-o a interromper as suas ocupações normais de estudante e ele atirou-se com sofreguidão à vasta enciclopédia hegeliana. “Durante a minha indisposição, escreve ele, li Hegel de princípio a fim e já me havia familiarizado com a maior parte dos seus discípulos. Prendi-me mais solidamente a esta filosofia do dia, da qual pensava libertar-me”. Que terá entendido de Hegel – lido de princípio a fim – esse jovem universitário que mal contava 19 anos? O fato é que o entusiasmo não durou muito e a adesão total ao hegelianismo foi, bem cedo, retirada. Neste novo passo, atuou, decisiva, a influência de Feuerbach.
 
A multivalência do pensamento hegeliano alimentou, após a morte do mestre, a divergência dos discípulos. Enquanto os conservadores – a ala direita – timbravam em manter-se fiéis à síntese original – sistema e método – os moços reclamavam ruidosamente o direito de criticá-la e corrigi-la em nome dos seus próprios princípios internos; conservavam o método para demolir o sistema. Novas atitudes políticas – Hegel divinizara o absolutismo do Estado prussiano – e um radicalismo anti-religioso caracterizavam esta ala esquerda, também chamada “o clube dos doutores”, de que faziam parte, entre outros menos expressivos, Bruno Bauer (1809 – 1882), David Strauss (1808 – 1874) e Ludwig Feuerbach (1804 – 1872). Em 1835 Strauss publicava a sua Vida de Jesus e em 1841, Feuerbach lançava a sua Essência do Cristianismo: as duas obras visavam reduzir o cristianismo a uma simples criação da consciência humana.
 
Para Feuerbach, o hegelianismo, que na sua dialética, partia do infinito e voltava ao infinito através do finito, não passava de um pseudo-misticismo, uma aplicação dos processos filosóficos a “matéria teológica”. A elevação do pensamento humano à dignidade do Absoluto, constituía uma tentativa de alienação, uma espécie de traição do humano. Era mister reconduzir à solidez da terra firme esta filosofia que se perdia nas nuvens. E Feuerbach atirou-se a um materialismo radical. A realidade única não é o Espírito, senão a Natureza, isto é, a matéria que sentimos. Em vez do monismo do pensamento, o monismo da matéria. Existência real outra coisa não é senão existência material, sensível. “Só o corpo distingue a personalidade real da personalidade imaginária de um fantasma”2.
 
Um deus pessoal e transcendente é uma ilusão, criada pelo homem que projeta fora de si os melhores atributos de sua natureza. A Verdade, A Ordem, o Amor, as tendências profundas, as aspirações mais ardentes que se identificam com a nossa espécie e se impõem a cada indivíduo, e o dominam e como que reclamam a sua adoração, nós as personificamos num absoluto transcendente e construímos assim a noção da divindade. Não é, pois, Deus, quem cria o homem, é o homem quem cria a Deus.
 
[Continua]
 
 

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